“Uma das minhas preocupações constantes é o compreender como é que outra gente existe, como é que há almas que não sejam a minha, consciências estranhas à minha consciência que, por ser consciência, me parece ser a única. Compreendo bem que o homem que está diante de mim, e me fala com palavras iguais às minhas, e me faz gestos que são como eu faço ou poderia fazer, seja de algum modo meu semelhante. O mesmo, porém, me sucede com as gravuras que sonho das ilustrações, com as personagens que vejo nos romances, com as pessoas dramáticas que no palco passam através dos actores que as figuram.
Ninguém, suponho, admite verdadeiramente a existência real de outra pessoa.
Ninguém pode conceder que essa pessoa seja viva, que sinta e pense e pense como ele; mas haverá sempre um elemento anónimo de diferença, uma desvantagem materializada. (…) Os outros não são para nós mais que paisagem, e, quase sempre, paisagem invisível de rua conhecida.
Tenho por mais minhas, (…), certas imagens que conheci de estampas, do que muitas pessoas, a que chamam reais, que são dessa inutilidade metafísica chamada carne e osso. E “carne e osso”, de facto, as descreve bem: parecem coisas cortadas postas no exterior marmóreo de um talho, mortes sangrando como vidas, pernas e costeletas do Destino. (…) O que parece haver de desprezo entre homem e homem, de indiferente que permite que se mate gente sem que se sinta que se mata, como entre os assassinos, ou sem que se pense que se está matando, como entre os soldados, é que ninguém presta atenção ao facto, parece que abstruso, de que os outros são almas também.
Em certos dias, em certas horas, trazidas até mim por não sei que brisa, abertas a mim por o abrir de não sei que porta, sinto de repente que o merceeiro da esquina é um ente espiritual, que o marçano, que neste momento se debruça à porta sobre o saco de batatas, é, verdadeiramente, uma alma capaz de sofrer.
Quando ontem me disseram que o empregado da tabacaria se tinha suicidado, tive uma impressão de mentira.
Coitado, também existia! Tínhamos esquecido isso, nós todos, nós todos que o conhecíamos do mesmo modo que todos que o não conheceram. (…) Mas que havia alma, havia, para que se matasse. Paixões? Angústias? Sem dúvida…
Mas a mim, como à humanidade inteira, há só a memória de um sorriso parvo por cima do casaco de mescla, sujo e desigual nos ombros.
É quanto me resta, a mim, de quem tanto sentiu que se matou de sentir, porque, enfim, de outra coisa se não deve matar alguém… Pensei uma vez, ao comprar-lhe cigarros, que encalveceria cedo. Afinal não teve tempo para encalvecer. É uma das memórias que me restam dele. Que outra me haveria de restar se esta, afinal, não é dele mas de um pensamento meu?
Tenho subitamente a visão do cadáver, do caixão em que o meteram, da cova, inteiramente alheia, a que o haviam de ter levado. E vejo, de repente, que o caixeiro da tabacaria era, em certo modo, casaco torto e tudo, a humanidade inteira.
Foi só um momento. Hoje, agora, claramente como homem que sou, ele morreu. Mais nada.
Sim, os outros, não existem… É para mim que este poente estagna, pesadamente alado, as suas cores nevoentas e duras. Para mim, sob o poente, treme, sem que eu veja que corre, o grande rio. Foi feito para mim este largo aberto sobre o rio cuja maré chaga. Foi enterrado hoje na vala comum o caixeiro da tabacaria? Não é para ele o poente de hoje. Mas, de o pensar, e sem que eu queira, também deixou de ser para mim…”
Bernardo Soares, Livro do Desassossego
ARTE
Porquê a arte?
A arte é o meio por excelência de transmissão de ideias e emoções, de transmissão subjectiva de conceitos subjectivos. O meio pelo qual o homem se expressa como ser com ‘alma’, capaz de imaginar, de sonhar.
É a arte acessível?
Para percebermos se a arte é acessível há que perceber o que é arte. E o que é arte? Não há uma definição definitiva de arte, mas algumas das características que distinguem uma obra de arte de qualquer outro objecto têm inerente o seu carácter elitista. Se uma obra de arte tenta incluir todos os cidadãos, se está ao alcance da massa, não é arte.
Mesmo a arte baseada nos novos meios de comunicação, nas potencialidades dos novos media, não têm, em geral, como objectivo da inclusão de todos na obra de arte. Têm um carácter interactivo e dinâmico, participativo até, mas não inclusivo.
COMUNICAÇÂO
A comunicação contribui com a multimodalidade.
Segundo McLuhan o nosso modo de percepcionar o mundo é multimodal. Quando captamos a realidade, captamo-la naturalmente através de múltiplos sentidos. De tal modo que a nossa percepção do mundo é sempre fruto de uma sinestesia.
Com a invenção da escrita e posteriormente da rádio, foi-se fazendo a separação dos sentidos na percepção da realidade e no processo de comunicação. Uma separação que inclusive os fortaleceu e desenvolveu, embora separadamente, dando primazia à visão. Agora com o desenvolvimento de meios audiovisuais e multimédia, caminha-se de novo para a fusão dos sentidos.
Pela comunicação se pode explorar a capacidade de transmitir mensagens subjectivas através de diferentes modalidades perceptivas.
Que pretendo fazer?
O meu objectivo é criar uma ponte que permita ultrapassar dois problemas: a falta de acessibilidade de uma mensagem artística, subjectiva, a pessoas com alguma incapacidade perceptiva, mas também, e sobretudo, ultrapassar a incapacidade de vermos que ‘os outros são almas também’.
Proponho-me por isso a criar uma instalação, (ou pelo menos o modelo conceptual), que explore a transmissão de um conjunto de conceitos subjectivos que nos constituem, assim como a transmissão desse conjunto de conceitos para serem percepcionados por varias modalidades perceptivas.
Pretendo assim trabalhar o retracto, de tal modo que não transmita apenas esta humanidade de ‘carne e osso’, mas aquilo que para além disso somos e que a todos nos une, a capacidade de sentir, as emoções.
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